A VIDA E A MORTE DE UMA VOZ INCONFORMADA

 

Os bares de Copacabana e da Zona Sul do Rio de Janeiro estavam lotados de torcedores que acompanhavam, pela tevê, a virada do Flamengo sobre o Emelec na Taça Libertadores. Também nas redes sociais o time carioca provava-se popular liderando o Twitter Trends Brasil na noite de quarta-feira. Em meio aos milhares de tuítes sobre os jogadores que decidiram a partida, um nome que nada tinha a ver com o jogo começou a subir no ranking de assuntos do momento: Marielle Franco. Aos poucos, o drama futebolístico dava lugar a uma tragédia emblemática.

Líder em uma das maiores comunidades pobres do Rio – a Maré, um aglomerado de 16 favelas espremidas entre a Linha Vermelha e a avenida Brasil onde moram 130 mil pessoas – Marielle foi a quinta mais votada entre os 51 vereadores eleitos na cidade em 2016. Recebeu 46,5 mil votos logo na primeira eleição que disputou. Usava o mandato para denunciar a violência policial e para cuidar dos interesses e preocupações de mulheres negras como ela. Eleita pelo PSOL, a socióloga pós-graduada em administração pública acabara de ser nomeada relatora da comissão da Câmara Municipal que deveria fiscalizar a intervenção militar na segurança do estado do Rio. Não teve chance de cumprir a missão.

Por volta das 21h30, enquanto o Flamengo entrava em campo no Equador, o Chevrolet Agile quatro portas branco em que Marielle estava foi alcançado por outro veículo na esquina das ruas Joaquim Palhares e João Paulo I, no bairro do Estácio, perto do centro da cidade. Foram pelo menos nove disparos. Oito projéteis atravessaram o vidro da porta traseira direita, bem no local onde Marielle estava sentada. O nono perfurou a lataria. Quatro atingiram a cabeça da vereadora. Marielle morreu aos 38 anos. Faria 39 em julho.

As balas traçaram uma diagonal dentro do Agile e três delas acabaram alcançando e matando o motorista do carro, Anderson Pedro Gomes. A trajetória que percorreram sugere que o atirador estava ao lado direito e atrás do Agile. Se Marielle estivesse no centro do mostrador de um relógio, o ponteiro indicaria que o assassino ficou entre as marcas das quatro e das cinco horas. Não é a posição de quem anuncia um assalto, talvez a de alguém que planeja uma execução. Nada foi roubado. O ângulo e a precisão dos disparos pouparam a assessora que viajava no banco do carona, à frente de Marielle.

Antes que a tevê noticiasse o atentado à vida da vereadora e de seus acompanhantes, múltiplos polegares se encarregaram de espalhar a história do crime por meio do WhatsApp. De lá, a notícia multiplicou-se pelo Twitter e pelo Facebook. À meia-noite e meia, “marielle franco vereadora” já era líder das “Tendências do Momento” do Google no Rio de Janeiro. A essa altura, nada provocava mais interesse entre internautas cariocas do que a morte da favelada negra que transformara a militância católica da adolescência em mandato eletivo por um partido socialista na meia-idade.

Grávida aos 18 anos, Marielle contou à Revista Subjetiva dez meses atrás que teve que interromper os estudos para cuidar da filha. Concluíra o ensino médio no turno da noite de uma escola pública, o Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro, e pretendia cursar uma faculdade. Matriculou-se em um curso pré-vestibular, mas a gravidez inesperada mudou seus planos. Era 1997, e ela estava numa fase de “fugir da igreja pra ir pro baile” – conforme disse na entrevista. Engravidou. Com o apoio da mãe mas sem o do pai da criança, Marielle tratou de dedicar-se à filha. Só pode retomar os estudos anos depois. Conseguiu entrar no curso de ciências sociais da PUC do Rio em 2002. Recebeu bolsa de estudos integral da universidade.

Já na madrugada desta quinta-feira, a morte da vereadora extravasou das mídias sociais para a mídia internacional. Correspondentes estrangeiros baseados no Rio de Janeiro publicaram notícias sobre o crime em inglês, espanhol e outros idiomas. A morte de Marielle deu no The New York Times. Atos de homenagem e de protesto foram marcados pela internet para esta quinta-feira.

Com o assassinato monopolizando o noticiário e ameaçando a popularidade da intervenção militar no Rio, políticos e governantes se apressaram em lamentar a morte da vereadora do PSOL, decretar luto oficial e prometer a solução do crime. As circunstâncias indicam um homicídio premeditado: o atirador sabia exatamente onde mirar para atingir Marielle, apesar de os vidros do Agile estarem fechados e serem escurecidos por uma película colante. Isso sugere que o carro onde estava o atirador seguiu o da vereadora talvez desde a Lapa, onde ela embarcara após participar de um evento com outras mulheres.

Porém, não há registro de que Marielle viesse sofrendo ameaças. Seus companheiros de partido fizeram questão de repetir isso em entrevistas ao longo da noite, argumentando que se ela tivesse sido ameaçada o PSOL teria denunciado, como forma de proteção. Qual teria sido, então, a motivação dos assassinos? Por ora, não há respostas, só especulações. Quatro dias antes de ser morta, a vereadora denunciara o assassinato de dois jovens em Acari, na Zona Norte do Rio. Em post no Facebook, afirmou que o batalhão da Polícia Militar que atua na região é conhecido como “batalhão da morte”. Pode ser uma pista, mas não é uma prova.

Denunciar a morte violenta de seus pares foi o que levou Marielle à política. Em 2005, uma amiga sua foi vítima de “bala perdida” durante um tiroteio entre policiais e traficantes na Maré. O engajamento em campanhas contra a violência policial em favelas aproximou-a de um ex-professor de História seu, do curso pré-vestibular. Em 2006, Marielle fez campanha para Marcelo Freixo, do PSOL. Eleito deputado estadual, o professor nomeou a ex-aluna para assessorá-lo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Após dez anos de trabalho como assessora parlamentar, Marielle elegeu-se em 2016 para seu primeiro e último cargo eletivo. O sucesso logo de cara predizia uma carreira política longeva. Quatro balas anularam a previsão. Mas não seu legado: foram 14 meses como vereadora, 19 anos como mãe, e quase quatro décadas como voz inconformada contra a violência à sua volta.

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO (siga @zerotoledo no Twitter)

Jornalista da piauí, foi repórter e colunista de política na Folha e no Estado de S. Paulo e presidente da Abraji