Após 80 anos de casamento, idosa com Alzheimer só reconhece marido
Do alto da cama hospitalar instalada no meio da sala, dona Genésia Generina Soares de Araújo, de 97 anos, espia o marido pelo canto do olho direito enquanto ele fala sobre quando construiu uma casinha de barro para os dois morarem em um sítio, no interior de Natal (RN). Com Alzheimer há 6 anos, apesar da família de 103 descendentes entre filhos, netos e até tataranetos, ela só reconhece o centenário Luiz Gonzaga de Araújo, com quem se casou há 8 décadas.
A união do casal aconteceu em 1936. Ela era de família com melhores condições financeiras, mas não se importou em mudar para um lugar mais simples com o companheiro. Foram morar na casa que Luiz ergueu na propriedade do pai dele e viveram lá por cinco anos.
Por baixo dos óculos miúdos, a mulher magrinha reconhece o esposo pela voz e pelo arrastar do andador até a poltrona que fica ao lado da cama dela, na residência com quintal amplo do bairro Vale do Sol, em Piracicaba (SP), onde moram desde os anos 1980.
A família conta que a ex-costureira foi diagnosticada com Alzheimer 4 anos depois de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) que paralisou o braço direito, mas nunca esqueceu o amor da vida dela.
– Quem é seu marido? – pergunta a filha caçula, professora Rita Maria de Araújo, de 56 anos, enquanto reclina o encosto da cama na posição vertical para a mãe sentar.
– Luiz Gonzaga – responde a idosa.
A união
Luiz se apaixonou pela prima aos 20 anos. Ela tinha 18. Hoje, o agricultor aposentado soma um século de histórias para contar, entre elas o dia do casamento, fato vivo na memória como se fosse ontem, mas que na realidade ocorreu em 25 de fevereiro de 1936, em Florânia (RN).
A festa que oficializou a união do casal foi embalada por sanfonas e muita dança, para fazer jus ao xará do Rei do Baião (Luiz Gonzaga do Nascimento).
Grande família
Seu Luiz e Genésia tiveram 15 filhos. As 6 primeiras meninas morreram ainda bebês, vítimas da falta de informações médicas no Nordeste daquela época. Mas os demais, outras 6 meninas e 3 meninos, não só “vingaram” como deram ao casal 46 netos, 33 bisnetos e 9 tataranetos.
Já adultos, os filhos convenceram os pais a se mudarem para Piracicaba em 1986. A família toda migrou para o interior de São Paulo e nunca mais voltou para o Rio Grande do Norte. Foi na cidade paulista que o aposentado comemorou os 100 anos, em junho do ano passado. A festa reuniu quase 200 pessoas.
Alzheimer x convivência
O neurologista Márcio Balthazar, professor da Unicamp, disse ao G1 que o fato de Genésia ainda reconhecer o marido entre tantos outros familiares e amigos pode ser atribuído à relação próxima entre eles, à convivência e às muitas conversas diárias ao longo dos anos.
“A princípio as pessoas não reconhecem o companheiro mesmo, mas quanto mais intimidade melhor. Quanto mais contato tiver com o outro, melhor.” Ele ressaltou também que o Alzheimer é uma doença que afeta primeiro as lembranças recentes.
Segundo o professor, há casos em que a mãe ou pai não reconhece mais o filho pois só lembra dele quando criança. “Vê um barbudo, uma pessoa mais velha chamando de filho, causa estranheza. É mais fácil achar que o neto é filho.” O especialista ainda afirmou que o mesmo pode acontecer entre casais. “Às vezes, a paciente confunde o marido com o pai.”
80 anos juntos
As oito décadas de matrimônio reluzem na mente de seu Luiz como fagulhas embaralhadas pelo peso de seu centenário e saem como peças de um quebra-cabeça. A filha Rita é responsável pela montagem desses fragmentos para facilitar o entendimento inclusive entre o próprio casal.
Com olhos marejados à sombra do chapéu, o idoso recorda como a mulher era “trabalhadeira” e deu conta dos estudos dos herdeiros sozinha. “Uma vez passei seis meses aqui para tratar de uma infecção e seis meses na estrada de Minas. Cheguei no Nordeste e ela tinha cuidado de tudo na casa. Não levei um centavo, porque eu não tinha, e ainda voltei e estava tudo certo.”
“Nós todos estudamos por conta dela”, confirmou Rita. “Meu pai vivia na roça, trabalhando, e ela tomava conta da gente. Fazia de tudo para estudarmos.” E deu certo. A caçula fez magistério e depois cursou pedagogia. “Era aquela pessoa que andava na cola da gente para estudarmos.”
Saudades do diálogo
O casal sempre foi de conversar muito quando Luiz Gonzaga estava em casa. Já na velhice, todas as tardes eles passavam sentados na calçada olhando a rua e batendo papo. Chegavam a almoçar na rua, conta a filha. “Eu ainda dava aulas, então a moça que cuidava deles era orientada a dar comida fora de casa mesmo, porque eles não queriam entrar”, lembrou Rita.
Aos poucos, porém, ambos se tornaram mais quietos. Nos últimos dois anos, mesmo período em que Genésia passou a ficar acamada, o silêncio começou a falar mais alto entre os dois. “Ele não aceita muito a situação dela”, diz Rita.
O aposentado passa pela cama da esposa, pergunta se está tudo bem, mas não entende muito bem o que a mulher fala e sente saudades dos tempos em que a companheira tinha mais saúde.
Rita acredita que ambos pioraram depois que um dos filhos morreu de câncer no intestino, há três anos. “Era o xodó da minha mãe. Quando ela pergunta dele e a gente diz que ele morreu, ela dá um suspiro. Então às vezes a gente só fala que ele saiu.”
Mimos e poesia
Todos os dias, a filha enfeita os cabelos de Genésia com uma flor. A costureira sempre gostou de flores e ganhava uma cada vez que o marido voltava para casa. Ainda hoje ele a presenteia com pequenos mimos.
Outro costume de seu Luiz e que deixa a casa mais alegre é a literatura de cordel que aprendeu com o pai na infância:
“Se o poeta Laurindo fosse criança mimosa
No peito da mãe mamando, com as faces cor de rosa
No peito da mãe mamando, se ele se amamentasse
O tempo bom foi passado
Ah, se o passado voltasse”
Enquanto Luiz declama, Genésia acompanha interessada com a cabeça inclinada para o lado da poltrona onde o marido está sentado.
65 livros em um ano
O gosto da mulher pela leitura também pode ter contribuído para retardar o avanço do Alzheimer, conforme o neurologista Márcio Balthazar. De acordo com a filha, a costureira chegou a ler pelo menos 65 livros em um ano. “Quanto mais escolaridade, mais atividade mental e intelectual menores são as chances de ter a doença”, afirmou o professor da Unicamp.
“Muitas vezes isso retarda o aparecimento da doença ou faz com que ela apareça de forma mais branda”, completou Balthazar.