Cigarro eletrônico ameaça política de combate ao fumo no Brasil
A redução do percentual de brasileiros dependentes de tabaco caiu 40% em pouco mais de uma década, segundo o Ministério da Saúde. Mas esse avanço pode estar ameaçado com a entrada dos cigarros eletrônicos e vaporizadores no mercado nacional, avaliam especialistas.
O Brasil ainda tem cerca de 18 milhões de pessoas dependentes do tabaco, a grande maioria de cigarro industrializado. Estima-se que 156 mil brasileiros morram todos os anos em decorrência de doenças relacionadas ao tabagismo.
Uma pesquisa do Ministério da Saúde identificou que o percentual de fumantes caiu de 15,6% da população em 2006 para 9,3% em 2018.
Nesta quinta-feira (29), Dia Nacional de Combate ao Fumo, a secretária-executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco do INCA (Instituto Nacional do Câncer), Tânia Cavalcante, alerta que os cigarros eletrônicos têm potencial para aumentar o número de pessoas que começam a fumar, colocando em risco a curva descendente vista até agora.
Segundo a médica, essa é a “investida mais forte e mais disruptiva da indústria da nicotina” já vista nas últimas décadas.
“No Brasil, apesar da proibição da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária], tem um estudo de 2015 que mostrou uma proporção baixa, de 0,43% de pessoas de 12 a 65 anos que já usaram o cigarro eletrônico. São 600 mil pessoas, não é um número desprezível. Embora a resolução esteja dando certo, a gente pode estar diante de uma evolução.”
Fumar cigarro eletrônico por 10 minutos equivale a mais de 1 maço
O entendimento é compartilhado pelo médico Ricardo Meirelles, pneumologista da Comissão Científica de Tabagismo da SBPT (Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia).
“Há uma queda da prevalência de tabagismo no Brasil importantíssima. Estamos falando de uma indústria [de tabaco] que está perdendo o filão do cigarro. O cigarro eletrônico é, sem dúvida, uma forma de iniciação. Apesar de proibido no Brasil, sabemos que existe compra livre pela internet e muitos jovens estão usando.”
Os chamados dispositivos eletrônicos para fumar são proibidos no Brasil desde 2009 por uma resolução da Anvisa. No entanto, esses produtos são facilmente vendidos em sites.
Em nota, a agência diz que fiscaliza o comércio eletrônico dos dispositivos e que entre os anos de 2017 e 2019 retirou do ar 727 anúncios desses produtos. A fiscalização de lojas físicas cabe aos Estados.
Agora, a Anvisa discute com a sociedade civil uma eventual atualização na regulação que proíbe os cigarros eletrônicos.
A última audiência pública sobre os dispositivos eletrônicos para fumar aconteceu na terça-feira (27), no Rio de Janeiro. A Anvisa afirma que, antes de uma decisão final, o assunto “ainda deve passar por outros mecanismos de participação social, como consultas dirigidas, diálogos setoriais, tomada pública de subsídio e consulta pública”.
“Com a pressão exercida pela introdução de cigarros eletrônicos e cigarros aquecidos, novas ondas promovidas pela indústria do tabaco na internet e direcionadas a adolescentes e adultos jovens têm levado a uma epidemia de consumo de tabaco sem precedentes, detectada pelo Food and Drug Administration nos EUA em 2018. Isso poderá minar os esforços da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde”, alerta uma nota do INCA.
Tânia critica o comportamento da indústria em todo o mundo. “As empresas têm se comportado de maneira predatória. Um dos tipos vendidos nos Estados Unidos, o Juul, usa um tipo de nicotina que é um sal de nicotina com uma capacidade muito maior de causar dependência.”
O governo norte-americano chamou de epidemia o uso de vaporizadores, conhecidos como vapes, entre os adolescentes. As autoridades de saúde estimam que mais de 3,6 milhões estudantes do ensino secundário e do ensino médio fazem uso desses produtos.
No Estado de Illinois, uma pessoa morreu em decorrência de doença pulmonar possivelmente causada pelo uso de vaporizador. A vítima teria usado o aparelho com óleo de cannabis. Se confirmada, será a primeira morte desse tipo nos Estados Unidos.
“Esta trágica morte em Illinois reforça os sérios riscos associados aos produtos de cigarro eletrônico. O vaping expõe os usuários a muitas substâncias diferentes para as quais temos pouca informação sobre danos relacionados, incluindo aromas, nicotina, canabinóides e solventes”, afirmou o diretor do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) do governo dos Estados Unidos, Robert Redfield em nota.
O pneumologista da SBPT enfatiza que, além da nicotina, o cigarro eletrônico e seus similares possuem substâncias que podem ser nocivas para os sistemas respiratório e cardiovascular.
“O que se sabe é que existem algumas substâncias que podem levar a uma bronquiolite, uma obstrução dos brônquios. Pode levar a uma inflamação do pulmão que pode levar à morte rapidamente, dependendo da concentração inalada.”
De acordo com o INCA, “as evidências científicas apontam que tais produtos trazem riscos de aumento de iniciação entre os não fumantes, presença de substâncias cancerígenas no vapor, evidência de danos celulares no DNA, aumento de chance de infarto agudo do miocárdio e asma”.
Meirelles explica que muitos desses dispositivos eletrônicos têm propilenoglicol e glicerol, substâncias que inflamam a mucosa brônquica. “Fumantes de cigarro eletrônico podem desenvolver asma, mesmo sem histórico prévio da doença. E aí surgem todos os problemas decorrentes da asma, como falta de ar e cansaço.”
O temor de entidades médicas é que uma eventual liberação do cigarro eletrônico no Brasil, além de criar uma nova geração de fumantes, desestimule aqueles que pensam em parar.
“A indústria apresenta o cigarro eletrônico como uma alternativa para quem quer parar de fumar. É apenas mais uma estratégia. Já vimos no passado os filtros com baixos teores”, lembra Meirelles.
Ele ressalta que existem métodos para o tratamento do tabagismo, que incluem os adesivos ou gomas de mascar com nicotina, uso de medicamentos e readequação comportamental. Em média, largar o cigarro leva três meses.
“Em função do entendimento de que o cigarro é um produto altamente letal, o mundo todo tem parado de consumi-lo. Essas empresas precisam se reinventar para sobreviver e migram os investimentos para novos produtos que eles apresentam como uma alternativa segura e menos tóxica para os cigarros convencionais. Eles se apropriam do discurso de redução de danos para apresentar esses novos produtos. Um dos efeitos colaterais desse mercado é a iniciação de jovens. Não pense que elas [empresas] falam em redução de danos pensando nos fumantes. Estão indo para esse mercado para reduzir o dano econômico que estão tendo”, conclui a médica do INCA. Fonte R7