Dia da doação de órgãos: conheça a história da brasileira que negou doença renal, decidiu ir ao Canadá e se rendeu ao amor do marido com doação de rim

Ângela recebeu um rim de seu marido, após perder mais de 70% da função renal — Foto: Arquivo pessoal

Ângela recebeu um rim de seu marido, após perder

mais de 70% da função renal — Foto: Arquivo pessoal

Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos, celebrado nesta sexta-feira, 27 de setembro, é uma data para reforçar que esse ato, que ajuda a salvar vidas, é uma manifestação de amor ao próximo. E a moradora de Botucatu (SP) Ângela de Oliveira, de 63 anos, aprendeu isso na prática.

É que ela, que chegou a negar a doença quando foi diagnosticada com um problema renal crônico na década de 1990, se rendeu ao apelo do então marido, o canadense Martin Houde, que se tornou o próprio doador de rim para ela, em 2006.

Ângela lembra que só conheceu o marido por ter, em um primeiro momento, “trocado” o transplante por um intercâmbio no país norte-americano.

Na época do diagnóstico, há cerca de 30 anos, após ser internada com quadro de hipertensão, a comissária de bordo aposentada da Aeronáutica decidiu por não entrar na fila de transplante, apesar da recomendação médica, e mesmo já tendo 70% da função renal comprometida.

“Foi um baque terrível, eu não tinha sintomas. Falar sobre transplante para mim era um assunto proibido. Eu cheguei à conclusão que eu já tinha vivido o bastante e que não ia fazer de forma nenhuma”, diz Ângela.

Parentes podem ser doadores vivos para pacientes que necessitam de transplante de rim — Foto: g1

Parentes podem ser doadores vivos para pacientes

que necessitam de transplante de rim — Foto: g1

“Foi uma decisão minha, bastante difícil. Eu tive que me aposentar, e eu estava no auge da minha carreira”, completa em entrevista ao g1.

Transplante ou intercâmbio?

Já com o diagnóstico, a botucatuense decidiu fazer um intercâmbio para conhecer lugares novos e aprender um idioma diferente. No caso, foi aprender francês no Canadá.

“Eu fui fazer o intercâmbio porque eu não sentia nada. Era assintomático. E foi no Canadá que eu conheci meu príncipe doador, que se tornou meu marido”, lembra.

Já no país norte-americano, Ângela conheceu Martin, seu futuro marido. A comissária de bordo explicou a ele sua condição, quando foram assumir um relacionamento sério.

“Eu expliquei que eu tinha perdido minha função renal, que eu não iria fazer transplante e que se ele quisesse casar, seria nessas condições. Ele respondeu que gostaria de terminar meus dias ao meu lado e que enquanto eu vivesse, nós ficaríamos juntos”, conta Ângela.

Martin doou um de seus rins para Ângela — Foto: Arquivo pessoal

Martin doou um de seus rins para Ângela — Foto: Arquivo pessoal

Mudando de opinião

Já com dois anos de casados, Ângela continuou seu acompanhamento médico no Canadá, realizando exames e consultas periódicas, até que em uma delas a conversa sobre transplante surgiu novamente.

“Eu me lembro como se fosse hoje. 2003, novembro, Montreal, quase 40ºC abaixo de zero. Eu estava no médico e meu marido disse que iria me buscar por conta de uma tempestade que estava vindo. Por coincidência ou destino, o médico atrasou e meu marido entrou na consulta comigo, coisa que ele não fazia. E ali o médico disse que não tínhamos mais tempo para esperar e que eu precisava entrar na fila de transplante. Foi aí que meu marido disse ‘e se eu for o doador?’”, lembra.

Após todos os exames de compatibilidade, o casal pôde escolher entre fazer o transplante no Canadá ou no Brasil. O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (HCFMB), na cidade de Ângela, foi a opção escolhida.

“Eu, como botucatuense, preferi vir para a cidade. Ele pediu demissão do emprego, desfizemos nosso apartamento e viemos realizar o transplante”, conta.

Hospital das Clínicas de Botucatu suspende consultas no ambulatório devido a problemas hidráulicos no prédio — Foto: Acontece Botucatu / Divulgação

Hospital das Clínicas de Botucatu suspende consultas

no ambulatório devido a problemas hidráulicos no prédio

— Foto: Acontece Botucatu / Divulgação

A cirurgia foi realizada no dia 5 de julho de 2006 após novos exames, desta vez feitos no Brasil. Ângela conta que tudo ocorreu bem e, após alguns dias internada, pôde voltar para casa, ainda no Brasil.

Renascimento

“É um renascimento, sabe? Tudo na sua vida muda. Inclusive a forma como você se cuida e fala: ‘não pode isso, não pode aquilo’. Você vai cuidar de você com mais carinho e coisas que você não prestava atenção, passa a prestar atenção, como procurar ter uma alimentação saudável”, explica.

Ângela contou ao g1 que a recuperação foi boa, mas que continua tomando remédios para evitar a rejeição do órgão que recebeu.

Tratamento gratuito e separação

Os medicamentos foram, inclusive, um dos motivos que separou o casal, já que Martin teve que voltar ao Canadá, onde Ângela não receberia os remédios de forma gratuita.

“Hoje ele vive em Montreal. Aqui é tudo gratuito, atendimento médico, remédios, transplante em si. Eu por minha parte não tenho fora do Brasil um atendimento, um suporte, como eu tenho aqui na Unesp. Infelizmente o Canadá não me dá isso, então prefiro ficar no Brasil”, comenta.

“A vida é assim, mas a minha relação com o meu doador, é claro, é de eterna gratidão. Eu nunca vou deixar de amar essa pessoa que me deu a vida”, finaliza.

“Ela doou seu coração. Ele retribuiu”

Em 2006, após o transplante, Ângela e Martin chegaram, inclusive, a participar de uma campanha para a doação de órgãos, como o tema “Ela doou seu coração. Ele retribuiu.”

Ângela e Martin participaram de campanhas de concentração para a doação de órgãos — Foto: Arquivo pessoal

Ângela e Martin participaram de campanhas de concentração

para a doação de órgãos — Foto: Arquivo pessoal

Transplante pelo SUS

O Dia da Doação de Órgãos faz parte da campanha “Setembro Verde”, que visa a conscientização e incentivo a essa ação, que pode salvar vidas.

Um dos transplantes mais realizados no Brasil, segundo o Ministério da Saúde, é o de rim, que representa cerca de 70% do total de transplantes de órgãos no país, dos quais 90% são financiados integralmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Essa prevalência se deve à característica de que, ao contrário de outros órgãos e tecidos, o rim pode ser doado por pessoas ainda vivas, o que facilita o processo de transplante e o sucesso da cirurgia.

Como funciona a doação

Em entrevista ao g1, o nefrologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Unesp de Botucatu (HCFMB), Gustavo Modelli, explicou que com doadores vivos, a chance de sucesso do transplante é maior, tendo em vista que pode ser planejado com antecedência.

“Os doadores vivos são indivíduos saudáveis que podem doar um dos rins de forma voluntária, geralmente parentes ou pessoas próximas ao receptor. Esse tipo de transplante pode ser cuidadosamente planejado, permitindo uma melhor preparação cirúrgica e pós-operatória. Os rins de doadores vivos costumam ter uma taxa de sucesso mais alta e podem funcionar por mais tempo”, explica o nefrologista.

Parentes podem ser doadores vivos para pacientes que necessitam de transplante de rim — Foto: Reprodução/TV TEM

Parentes podem ser doadores vivos para pacientes

que necessitam de transplante de rim

— Foto: Reprodução/TV TEM

Os rins são órgãos vitais, localizados na parte inferior das costas, e desempenham a função de filtrar o sangue, removendo resíduos e excesso de substâncias, como água, sais e toxinas, que são excretados na urina.

Segundo o médico, as principais causas que levam ao mau funcionamento do órgão e à necessidade de um transplante é a Doença Renal Crônica (DRC), que é frequentemente resultado de condições como diabetes e hipertensão arterial, especialmente quando mal controladas.

“Essas duas condições são as maiores responsáveis pelo desenvolvimento de DRC no mundo atualmente. Outras causas incluem glomerulonefrite (inflamação dos glomérulos), doenças genéticas como a doença renal policística, e doenças autoimunes que afetam a função dos rins, como o lúpus”, disse em entrevista ao g1.

Gustavo Modelli observa que, após o transplante renal, tanto o doador quanto o receptor ficam com apenas um rim, já que cada pessoa normalmente possui dois e que com hábitos saudáveis, essa condição não afeta diretamente a qualidade de vida de nenhum dos dois.

“O rim remanescente geralmente é capaz de compensar a função do órgão ausente. No entanto, é importante adotar cuidados específicos para manter a saúde renal, como seguir uma dieta equilibrada, manter-se hidratado, controlar a pressão arterial, evitar o uso excessivo de medicamentos que possam sobrecarregar os rins, e evitar hábitos prejudiciais, como fumar ou consumir álcool em excesso”, finaliza o nefrologista.

Como ser um doador

Desde abril deste ano, quem quer ser doador de órgãos pode manifestar e formalizar a sua vontade por meio de um documento oficial, feito digitalmente, reconhecido em cartório.

O processo é completamente digital. Basta acessar o formulário, preencher e enviar. Depois disso, o documento é enviado a um cartório que vai acionar o doador para confirmar os dados em uma chamada de vídeo. A declaração não tem custo.

Depois da declaração, a Central Nacional de Doadores de Órgãos vai saber, a partir da consulta por CPF, que a pessoa é doadora e, com isso, avisar a família antes da decisão.

Setembro Verde incentiva conversa sobre doação de órgãos — Foto: Reprodução/RPC

Setembro Verde incentiva conversa sobre doação de órgãos

— Foto: Reprodução/RPC

Fonte: G1