E como diria meu compadre Aristóteles, inspetor de alunos na Escola Municipal de Macondo: ‘Tudo nessa vida passa, e se não passa, fica’. Sábio Aristóteles. Conhecedor profundo das maldades das crianças daquele colégio, que adoravam irritar o inspetor, apenas para ver ele correr atrás das pernas pequenas, segurando a calça e a raiva.

Como diria o seu idealizador, Gabriel Garcia Marquez, Macondo é “uma aldeia de casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”. A escola é por minha conta. Aristóteles também.

Naquele vilarejo, sorrir era uma enorme conquista para os olhos tristes e amargurados. Senhoras com sacos de roupas na cabeça, cantarolando músicas que passaram por gerações, meninos pelados e sem vergonha, brincando no rio de águas transparentes, dividindo espaço com os peixes do jantar. Apesar de pobre, era um lugar feliz. Menos para o inspetor da escola.

Aquele educandário era o único que se encontrava em Macondo. Era lá que as crianças aprendiam o alfabeto e comportamentos religiosos. A escola era feita de madeira velha, carcomida por algum inseto típico da região e pelo tempo que por lá parecia passar mais rápido do que em outro canto.

Dois professores se revezavam no ensino às crianças. Não eram muitos os frequentadores das salas de aula, mas davam trabalho. Por isso se fazia necessário o revezamento, que acontecia a cada dia. Aristóteles trabalhava sozinho e seu salário era apenas um prato de comida e um canto para dormir. A escola era sua morada.

Por isso presava respeito daqueles moleques pequenos, atentados, esfomeados, amigos. Eram eles a sua distração diária, os responsáveis por um sorriso largo depois de correr e deixar a calça cair, mostrando as partes para quem estivesse por perto. Era um homem sofrido, solitário, que via a possibilidade de alento em qualquer abraço de Macondo.

Morando tantos anos no colégio pequeno, aprendeu a ler depois de muito custo. No começo, achava desnecessário, mas a insistência da professorinha Callie Nunes, e o seu jeito encantador, o convenceram da necessidade de juntar letra por letra e formar frase por frase.Assim, começou a contar sua história…

Criado na rua, sem pai nem mãe, com fome todo dia. Tinha marcas do sol estampadas na testa. Tinha as pontas dos dedos moídas de tanto carregar pedras pontudas, alicerces do vilarejo. Era mais forte do que se apresentava, mas ninguém apostava um peso em sua vida.

Aristóteles, meu amigo. Seu nome mesmo era Pablo Rincón, mas ninguém sabia. Lia tanto por aí, que conheceu o filósofo grego e adotou um pseudônimo. “A cultura é o melhor conforto para a velhice”, dizia, copiando o parceiro famoso.

Aquele povoado se desfez… Gabriel criou e colocouMacondoabaixo. Uma gigantesca tempestade de vento a limpou do mapa.

Me desculpe, Gabriel, por reinventar a sua obra nestas linhas. Mas, disse Aristóteles que “nunca existiu uma grande inteligência sem uma veia de loucura”. A minha se mostrou relembrando ‘A revoada’, ‘Cem anos de Solidão’, à beira de um rio de águas calmas e diáfanas, num vilarejo de 20 casas, que se tornou perene no que ainda chamam de literatura.

Kallil Dib – jornalista

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