Mulheres negras têm palestra online interrompida por imagens de gorilas
Uma palestra online que problematizava o racismo, promovida no dia 16 de novembro pelo Conselho Municipal de Políticas Públicas para Mulheres em parceria com a prefeitura de Bauru (SP) e apoio da Universidade Estadual Paulista (Unesp), foi alvo de ataques.
Durante o evento, palestrado e mediado por mulheres negras, um vídeo com três gorilas dançando e emitindo sons do animal foi apresentado aos ouvintes por meio de compartilhamento de tela.
A estudante de jornalismo na Unesp e mediadora da palestra, Letícia Pinho, de 22 anos, contou ao g1 que a mesa começava 14h e o link de acesso à plataforma de transmissão do evento foi compartilhado previamente. Enquanto aguardavam os ouvintes, as ofensas começaram.
“A mesa foi divulgada com antecedência, junto ao link da transmissão. Por volta das 14h, enquanto aguardávamos o pessoal, cerca de três pessoas com nomes claramente falsos entraram. Um dos perfis, com o nome de Maria Clara, compartilhou a tela e o vídeo dos gorilas começou”, explica.
Ainda segundo Letícia, os organizadores e responsáveis pela transmissão da Casa do Garoto, estavam com instabilidade de internet no momento e não conseguiram remover os perfis. Porém, a professora da Unesp e palestrante, Andresa de Souza Ugaya, solicitou que parassem.
Em entrevista ao g1, a professora Andresa comenta que pediu que o vídeo fosse interrompido e que esses perfis saíssem da palestra. “Eu falei que se não estivessem ali para contribuir, que saíssem da plataforma. Tudo isso com educação, mesmo estando com muita raiva”, diz.
Mas os ataques não sessaram. Ao contrário, Letícia relata que no decorrer das falas das palestrantes, a mesma pessoa com nome de Maria Clara voltou a transmitir a tela, dessa vez com o brasão do Flamengo, junto ao hino do time de futebol carioca.
No momento do ocorrido, Letícia afirma que não soube como reagir, mas o susto fez com que o tema da palestra “Mulheres negras e o racismo nosso de cada dia” abordasse, também, ações como a que presenciou.
“Fiquei incrédula, chocada, não sabia o que fazer, não consegui falar nada. As pessoas aproveitaram do anonimato para praticar esse ato racista. Nos chocamos tanto com o que aconteceu que a mesa caminhou para esse assunto também, mudamos um pouco o foco”, conta.
Andresa também explicou que não esperava o ocorrido, mas que manteve a calma para conseguir reafirmar o pedido aos perfis que saíssem da palestra.
“Eu mantive a calma, mas depois chorei ao ver uma imagem da personagem Adelaide do Zorra Total que havíamos trazido para a discussão. O racismo é sistêmico, eu fico com raiva, mas mantenho o engajamento na minha luta, porque o que aconteceu na palestra é o que vivemos todos os dias”, lamenta.
Inclusive, Letícia relembrou que, pela voz de um desses perfis que proferiram os ataques, ela acredita que se tratava de um jovem entre 12 e 13 anos. Além disso, as três mulheres registraram um Boletim de Ocorrência online no último domingo (28).
Em nota, a prefeitura informou na sexta-feira (3) que a Secretaria do Bem-Estar Social está tentando, junto à entidade Casa do Garoto, identificar “os hackers” que invadiram a palestra online.
O curso de Jornalismo da Unesp divulgou uma nota de repúdio ao caso contra as três palestrantes. No texto, o curso reforça que se solidarizam às mulheres, “assim como aos demais indivíduos que convivem com o preconceito diariamente.
“Atitudes racistas não podem ser aceitas e ter espaço nos diversos ambientes sociais, cabe, portanto, às autoridades a identificação e punição dos agressores”.
Outro caso
Em março deste ano, uma médica veterinária especialista em animais exóticos relatou ter sofrido um ataque racista depois que sua palestra online para um grupo de estudos da Unesp de Botucatu (SP) foi invadida.
Talita Santos, que atende em São Paulo, contou ao g1 que estava ministrando a palestra para o Grupo de Estudos de Animais Selvagens da universidade no dia 18 de março e, cerca de uma hora depois de começar o conteúdo, foi interrompida por um áudio.
“Abriram os microfones, como se fosse entrar uma dúvida, mas eu não estava entendendo. Começou uma poluição sonora muito grande, barulho, música, sons de primatas, falas do presidente Bolsonaro”, lembra Talita.
Segundo a veterinária, outras pessoas que estavam na chamada de vídeo relataram que também foram exibidas imagens de primatas e do presidente durante a palestra, mas ela não conseguiu ver, já que estava com a tela aberta nos conteúdos que ensinava.
“Eu fiquei tentando falar porque eu não entendia, achei até que fosse um vírus do meu computador, aí a palestra sumiu. Depois o organizador me falou que a palestra tinha sido invadida”, conta a veterinária.
Um vídeo enviado ao g1 mostra o momento em que falas de um homem, risadas, sons de macacos e uma música atrapalharam a live.
Segundo a especialista, o link da palestra era aberto e qualquer pessoa poderia ter acesso. No entanto, ela não conseguiu identificar quem entrou na chamada e fez o ataque.
“O organizador até tentou tirar as pessoas da sala, mas tinha muita gente entrando e ele acabou fechando.”
Depois do ocorrido, Talita disse que recebeu bastante apoio do grupo de estudos da Unesp e que vai registrar um boletim de ocorrência para que a polícia tente encontrar os responsáveis e puni-los.
“Sinceramente, não é diferente de outros ataques racistas. Não é a primeira vez que acontece, nunca é agradável, mas a vida já calejou bastante. É sempre uma situação ruim, mas ao mesmo tempo não foi algo que me afetou emocionalmente ou me fez duvidar da minha capacidade de trabalho.”
Nas redes sociais, a Afrovet, que é uma rede de graduandos e médicos veterinários negros, publicou uma nota de repúdio ao ataque sofrido por Talita.
“Viemos através dessa nota, primeiramente manifestar toda nossa solidariedade e apoio à médica veterinária Talita Santos e repudiar de forma veemente os atos racistas praticados, lembrando que racismo é um crime gravíssimo e deve ser punido como tal.”
A Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia do campus da Unesp de Botucatu divulgou uma nota de repúdio à ação contra a médica veterinária. No texto, a FMVZ reforça que “tal ação, claramente organizada, além do seu caráter criminoso, tem as marcas da intolerância, da covardia e do ódio à disseminação e a promoção do conhecimento, único caminho possível para a construção de uma sociedade mais justa e democrática”.
Informou também que a “Diretoria da FMVZ se solidariza com a palestrante ofendida e os participantes agredidos durante essas lamentáveis ocorrências e informa que seguirá colhendo informações que possam embasar providências concretas em relação a tais delitos, além de medidas que previnam ações dessa natureza.”
A Reitoria da Unesp, por meio da sua assessoria de imprensa, também reforçou o repúdio da universidade a essas ofensas e destacou que está empenhada em identificar os autores.
*Sob supervisão de Paola Patriarca